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quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Conto de Marcos Hungria



JORNADAS RODOVIÁRIAS


Moçambique oferece uma fascinante mistura de culturas, formadas pelas várias tribos locais, portugueses, comerciantes de origem árabe e indiana. Depois dos 25 anos de guerra civil, o potencial turístico começou a se desenvolver.

Para quem vem da África do Sul, a chegada à Maputo, cidade portuária e capital, é um pouco impactante, pois as ruas sujas e esburacadas da periferia, os carros caindo aos pedaços dominam nossa visão.

A adaptação é rápida, logo a primeira impressão vai embora, dando lugar à uma sensação de bem estar e proximidade de casa ao andar pelas alamedas bem arborizadas do centro e ouvir as pessoas nas ruas falando ora português ora dialetos. Tudo isso aliado ao estilo colorido da arquitetura portuguesa das casas, fez-me viajar em pensamento para uma cidade qualquer do nosso litoral brasileiro.

Já instalado no “The Base” (albergue), planejava como ir o mais rápido possível para Inhambane, destino popular entre os mochileiros pelas belas praias e ótimo ponto para mergulho, quando descobri que o canadense de descendência chinesa que compartilhava o quarto comigo também tinha o mesmo plano.

Não eram 5:30 da manhã quando um táxi todo arrebentado parou na porta do albergue para levar Shawn e eu até a periferia da cidade onde a garagem da empresa de ônibus que fazia o percurso se situava .

Já próximo ao destino, mas ainda dentro do táxi, pude perceber o estado da tal garagem. Tratava-se de um galpão de portas de aço enferrujadas, cuja parte do telhado já não existia mais. Do lado de fora, muita gente parada em filas mal formadas.

Ao desembarcarmos do taxi, como não poderia ser diferente, vários grupos de “agentes” disputavam a nossa suposta comissão por carregar as mochilas e por conseguir comprar as passagens por nós, já que estrangeiros teriam muita dificuldade de se virarem naquele local.

Alguns já começavam puxar as alças das mochilas, quando comecei a falar em português :

“ Pode deixar, aqui ninguém precisa de ajuda!!”

A partir daquele momento as coisas ficaram mais fáceis. Até meu parceiro canadense, que havia passado por situações muito piores, em Uganda, Quênia e Tanzânia, se sentiu confortável em deixar as decisões por minha conta.

Após perguntar e confirmar várias vezes, acabei encontrando a fila certa, consegui entrar naquele galpão sujo e cheio de peças de ônibus velhas e finalmente adquiri as passagens para Inhambane. Do lado de fora, junto ao ônibus, Shawn, assediado por todo tipo de oportunista, tomava conta das mochilas. Era hora de colocar o português em prática novamente:

Com olhar fixo e bem sério para aquele grupo de espertinhos, soltei algumas palavras :

“ E aí ? Beleza ? Algum problema? Ele está comigo, ninguém precisa de ajuda aqui! “

O assédio se abrandou, mas não imaginei que a palavra “beleza” fosse fazer tamanho sucesso. Aquele grupo de jovens moçambicanos começou a repetir a palavra e achar graça, isso fez com que o clima ficasse bem descontraído, rolando até uma simpatia.

Após constatar o estado do ônibus que nos levaria para Inhambane, comecei a desconfiar que aqueles moçambicanos poderiam não estar rindo da palavra “ beleza” que eu havia mencionado, mas sim da ausência de “beleza”, ou melhor, “de segurança”que havia naquele coletivo.

Caso o problema fosse somente o estado dos bancos e a tremenda sujeira, acho que poderia passar até desapercebido, mas o “X” da questão estava bem em frente aos nossos olhos, ou melhor, estaria a viagem toda bem em frente aos olhos do motorista. A quantidade de rachaduras e remendos feitos com vários tipos fitas adesivas que havia nos pára-brisas daquele meio de transporte era tão grande que parecia que ele havia voltado de uma zona de conflito armado.

Shawn, subiu rapidamente para guardar nossos lugares. Misturado à multidão fiquei para colocar as mochilas no bagageiro, que apesar de imundo, pagava-se uma taxa para utiliza-lo. Ressabiado e surpreso pela existência de taxa tão absurda, fiquei observando se a população local também seria cobrada. Após ter plena certeza que não era armação para turista, desembolsei meus Meticais (moeda corrente local).

O barulho do motor já anunciava que o ônibus não iria longe, pelo menos havíamos conseguido sentar. Mal saímos da cidade e foi feita a primeira das várias paradas para o embarque de mais passageiros, ao olhar pela janela era difícil identificar tais supostos passageiros em meio à uma enorme multidão de pessoas que quase se atiravam contra a lateral do ônibus na tentativa de vender seus produtos através das janelas.

Caixas de papelão com pães, frutas embaladas ou dentro de bacias, água mineral, refrigerante, salgados. Tudo isso e muito mais se movia freneticamente a poucos palmos abaixo de nossa janela.

O gosto por imagens comuns do dia-dia da vida da população, sempre me atraiu. Isso me fez levantar parte do corpo e colocar a câmera para fora da janela a fim de obter uma bela imagem daquela multidão de vendedores. Frações de segundos após pressionar o botão senti um cutucão na minha mão, era um dos vendedores tentando derrubar minha câmera. O rapaz segurava uma vara numa mão, a outra mão sinalizava negativamente como que dizendo : “ não tire fotos”.

Tal aviso somado aos olhares de desaprovação de outros vendedores foram suficientes para que eu tomasse mais cuidado ao tirar outras fotos.

Para a sorte dos passageiros, nas paradas seguintes, já um pouco mais longe de Maputo, o assédio dos vendedores era muito menor, chegando a ponto do motorista permitir a entrada de alguns dentro ônibus. Dentre eles, os vendedores de castanha de caju. Nunca havia comido tanta castanha por tão pouco. Aquela região do país é famosa pela alta produção de tal guloseima.

Chegando em Xai-Xai, quase metade do caminho, o ônibus teve que forçosamente parar na garagem da empresa e de lá não sairia mais. Não fiquei espantado, pois chegar até ali, nas condições em que ele se apresentava, já era quase que um milagre.

Todos os passageiros teriam que embarcar em outro ônibus. Como havia excesso de passageiros e não queríamos viajar em pé, falei para o Shawn se adiantar e reservar nossos lugares no outro ônibus e eu ficaria esperando a liberação de nossas mochilas de dentro do maleiro.

Após muita demora, consegui pegar as duas mochilas. Elas estavam totalmente imundas. Ao segurar a mochila do canadense, me perguntei: “que diabo que esse cara leva de tão pesado aqui dentro ?” Sempre viajei com a menor quantidade de bagagem possível, mas meu parceiro parecia levar uma boa parte da casa dele lá dentro.

Foi cambaleando que carreguei as duas mochilas de uma vez só nas costas e as coloquei no bagageiro do outro ônibus. Na janela bem acima da porta do bagageiro, local estratégico para vigiar o que as pessoas tiravam de lá, Shawn ria muito do meu esforço.

Desta vez o ônibus era um pouco melhor e a chegada até Inhambane foi tranqüila.

Foram três dias de sol, praia, futebol com os nativos, contato com pescadores. O mar permaneceu muito agitado o tempo todo que estive lá. As saídas dos barcos das operadoras de mergulho estavam todas suspensas. Como eu tinha que pegar meu passaporte na embaixada da Swazilândia em Maputo, não poderia ficar nem um dia a mais. Sendo assim, deixei de vivenciar a maior atração do local, mergulhar junto aos tubarões baleia, maior peixe que se conhece, podendo chegar a quinze metros e que não apresenta perigo ao ser humano.

Shawn iria voltar para a África do Sul comigo, via Swazilândia. Combinamos de nos encontrar em Maputo, assim ele poderia ficar mais um dia em Inhambane na esperança de fazer o mergulho, já que canadenses, estavam entre as nacionalidades que não necessitavam de visto para entrar na Swazilândia.

Meu relógio despertou em plena madrugada, pois deveria caminhar um bom trecho da pousada até alcançar o vilarejo, de onde pegaria uma van até a cidade, uma meia hora de viagem.

Apesar do atraso na saída, o motorista da van recuperou o tempo perdido fazendo-a quase voar. Devo confessar que em determinado momento achei que a combinação de tal imprudência, aliada ao estado precário do veículo e às condições da chamada estrada, resultaria em final trágico.

Desembarquei a salvo da van e logo avistei o ônibus da “Oliveiras transportes e turismo”. Ao mesmo tempo em que as dificuldades da vinda surgiram em minha mente, um agente de uma empresa de micro-ônibus me oferecia passagem mais em conta e viagem mais rápida.

A oferta era tentadora, só após aceita-la descobri que tal micro-ônibus não possuía compartimento de bagagens, logo tive que carregar tanto a mochila grande quanto a de mão para dentro do veículo.

Já em movimento, fiquei muito satisfeito em perceber que vários bancos estavam vagos, por isso nem me incomodei com o fato deles não serem reclináveis, pois com tal falta de passageiros pude me instalar na última fileira de bancos. Quem não gostaria de estar no meu lugar? Eram cinco assentos vazios em linha. Aproveitei para deitar, fazendo questão de ocupar todos aquele espaço ocioso.

Depois de meia hora de relax, as constantes paradas do micro-ônibus começaram a me preocupar. Constatei que a cada uma delas, uma boa quantidade de pessoas entrava carregando todo tipo de bagagem para dentro.

Não demorou muito para meu território começar a ser ameaçado, já não era mais possível permanecer deitado, mas eu ainda dominava dois últimos assentos vagos além do meu. Quando o micro fez mais uma parada, eu já havia me conformado em perder aqueles dois lugares sobressalentes e imprescindíveis para meu bem estar.

Meu olhar ansioso, atravessava todo aquele monte de malas, sacos de mantimentos e caixas de papelão que foram se acumulando com a entrada dos outros passageiros, e procurava localizar os meus dois “novos companheiros” de viagem que estavam prestes a surgir junto à porta de entrada.

Para melhorar as coisas, minha visão captou duas mulheres. Na frente, tropeçando nas caixas e sacos que obstruíam o corredor, vinha a mais velha. Atrás a mais nova caminhava pisando em cima de algumas malas e ainda tentando equilibrar uma criança de uns dois anos em seu colo.

A sentença estava decretada, me espremi ao lado da janela, colocando uma mochila prensada contra minhas pernas e a outra no meu colo, respirei e dei boas vindas aos recém- chegados. Não senti reciprocidade.

A mulher com a criança no colo acabou sentando ao meu lado. Tentei uma aproximação, oferecendo bolachas para elas. A oferta foi aceita prontamente, mas sem muito sinal de gratidão, seus semblantes continuavam fechados.

Não havia passado nem metade das oito horas de viagem que eu iria enfrentar e apesar de estar em Moçambique a língua mais falada no ônibus não era o Português e sim dialetos impossíveis de serem entendidos por mim.

Meia hora a mais de viagem e o ônibus estaciona no acostamento. O motor para de funcionar. Logo pensei em pane mecânica ou pneu furado. Vejo as pessoas se levantando e se locomovendo sobre as bagagens do corredor em direção à porta. Olhando pela janela, logo descubro que se tratava de uma parada para as pessoas fazerem suas necessidades fisiológicas.

Por certo o motorista tinha um local apropriado. Tratava-se de um matagal alto, mas com algumas picadas que levavam ao seu interior. As mulheres, algumas às pressas, se dirigiam para dentro do matagal, enquanto os homens, escolhiam sem muita preocupação um matinho qualquer na beira da estrada para se aliviarem.

Não sabendo quando seria a próxima parada achei por bem também descer.

Já na borda do matagal, percebi que aquela situação havia se tornado constrangedora para mim. Não sei se por ser o único branco a bordo daquele ônibus, tinha a nítida impressão de que eu era o alvo da curiosidade de todos.

Talvez querendo traçar um comparativo étnico-racial com relação ao membro responsável pela perpetuação da espécie, constatei que alguns dos passageiros esticavam seus pescoços, provavelmente no intuito de aferir medidas e outras características.

Aquilo foi o bastante para me fazer achar que minha bexiga não estava tão cheia como eu havia pensado e voltar ao ônibus. E foi novamente pisando sobre todas as bagagens que entulhavam o corredor que voltei ao meu espremido lugar.

Não demorou muito para o nosso motorista, já aliviado, dar a partida no ônibus. Esse foi o sinal para que as últimas mulheres surgissem de entro do mato, viessem a bordo ainda arrumando seus vestidos.

Para a minha surpresa e alívio, depois de uns vinte minutos de viagem, era feita uma nova parada. Desta vez em um posto de gasolina para o abastecimento. Após uma breve análise do local, localizei uma pequena lanchonete. Pedi licença para a menina com a criança no colo ao meu lado, encarei o corredor e saí em direção à lanchonete. Ou melhor, ao banheiro dela.

Longe da curiosidade dos outros passageiros tudo estava resolvido. Foi voltando a bordo que percebi que eu tinha deixado minha mochila pequena no ônibus, coisa que jamais faço.

Lembrei que dentro dela estavam minha câmera e alguns itens pessoais, logicamente dinheiro e passaporte sempre ficavam junto ao meu corpo.

Esses segundos de pensamentos comigo mesmo, foram suficientes para uma auto-repreensão, pois aquela preocupação teria sido gerada por uma inconsciente desconfiança em relação à honestidade daquelas pessoas muito simples que estavam sentadas ao meu lado e isso não me parecia certo.

Quando meu foco deixa as confabulações cerebrais e se fixa no real, eu já havia passado por cima de todas as bagagens do corredor, pedido licença à menina e sentado no meu cantinho junto à janela.

Não precisei de um segundo sequer, para voltar a pensar que a desconfiança faz parte da sua sobrevivência quando se viaja sozinho. Minha mochila pequena estava com o zipper um pouco aberto. Não podia acreditar que a menina, mesmo com um bebê no colo poderia se apropriar de algo que estava dentro de minha mochila. Após uma checagem, não dei falta de nada.

Mais algumas horas, o micro-ônibus alcança a periferia de Maputo, onde a maioria dos passageiros descem, deixando espaço para eu poder esticar as pernas, já meio duras. Desço próximo ao centro da cidade e caminho um bom trecho até o “The Base”.

Somente na hora de escovar os dentes que percebo a falta do meu estojo com a escova, pasta e fio dental. Não fiquei nem um pouco chateado, pois uma pessoa que abre uma mochila alheia e ao invés de pegar uma câmera, opta pelos produtos de higiene bucal, é provavelmente alguém muito ingênuo e que passa necessidades.



Marcos Hungria

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