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terça-feira, 19 de agosto de 2008

Poeta Marcelo Novaes







Marcelo Novaes.Nasci em São Paulo, em 1961. Sou um psicanalista que escreve. Estudei música até os treze anos, com o professor e maestro Manoel São Marcos. Violão clássico e teoria musical. Fiz duas meias faculdades antes de me formar em Psicologia: Farmácia e Comunicações. Sempre gostei de escrever. Meu livro Cidade de Atys (Ateliê Editorial,1998) foi escrito em um semestre, quando eu tinha 26 anos, ainda que eu o tenha publicado muito tempo depois.
Meu blog é um blog finito. Terá mil poemas e se encerrará. Textos que remetem uns aos outros, através dos seus marcadores. Pretendo publicar apenas mais dois livros, um ensaio clínico ( "O Olho Que Nos Olha Nos Olhos") e um livro de poemas e prosa poética ( "A Franja Branca da Luz"). Cada escritor tem duas ou três coisas pra dizer. É assim que penso. E com isso, terei dito as minhas.





Intervalo











Identifiquei tua chegada
pelas seis primeiras notas
dos teus passos, leves como
o intervalo das notas numa
harpa.


Identifiquei tua chegada
pelas pausas entre as tuas
pisadas, e por minha respiração
entrecortada.


Identifiquei tua chegada
pelo ruído de teus dedos
coçando as unhas recém
pintadas de rosa salpicado
de prata.


Identifiquei tua chegada
logo que meus olhos
marejaram,
antes que eu pudesse
ver sombra vulto ou
silhueta.


Identifiquei tua chegada
pela rispidez da paz que
se me impôs, assim, do
nada.








Marcelo Novaes



O Lugar do Tombo





Baratas invadindo os
cômodos. Pestilências.
Miasmas.



Os demônios nada mais
são do que moscas
varejeiras,



senhores de toda a
sujeira,



desses cômodos, dos
ratos insetos e
humanos.



São donos que entram
pela porta dos
fundos da vida
de muitos,



com fala baixa que
quase não se
ouve,



convidam sibilam
como um réptil
intranquilo mas
quieto e imóvel,



com uma voz
que parece sair
da dobra da página
de uma revista:



"Venha conhecer
O que é Aqui",
sussurra a voz
repulsiva.



"Aqui é o Lugar dos Absurdos,
onde não se desatam os nós,
nem latem os cães. Eles uivam
para um Céu sem Sol. Veja, olhe
bastante, não fuja tão Cedo,
confira com o dedo ( como
feriu-se a filha da madrasta,
na roca) a Imundície que reina
à tua Volta.É o que impera no
Perímetro do meu Império. E
não seja cínico, porque te trouxe
aqui para adotá-lo como meu Filho
Ímpio. Vou tomar-te de cor a Súmula
de Santo Tomás de Aquino, enquanto
te vigiam meus Sentinelas montados
em cem cavalos, monstros e Esfinges.



Aqui é o lugar do Tombo. Aqui é o
Lugar. Veja como me alisa a Mulher
sem camisa e de ventre liso, veja como
não me tem como bicho ou sua sujeira,
mas seu Amigo. Você pode ter Compaixão
por Ela?! Se não pode, então é dos Meus,
também imundo Inseto. A você parece
que eu ressôo e exagero, que sou Menos
do que alego Ser, que minha Voz é ronco
insano em Sonho Branco a embalar as
mãos dessa Má Mulher que me alisa o
flanco.



Eu sei dos teus anseios, dos teus receios e
preferências. Foque os olhos. Não será Ela
a tua tão decantada Hilda Hilst, que Aqui
me serve lúcida e Feliz?! Não será Esta a
Luciférica Meretriz, a Obscena Senhora?!



Por que teus olhos ficaram mais Gordos
agora, quase Desvairados ao cogitar a
Identidade de Quem me serve e não
serve pra você, porque tua Respiração
quase Animal se tornou mais rente ao
Chão e teus olhos, de repente, ficaram
Maus-como-a-Mim-me-sentes?! Só
porque ataquei tua Musa, ou te parece
que a Degenerei?! Quer que eu te trate
como?! Por Senhor, Você ou como Vítima
dos Engodos?! Não queiras Mal a Mim,
porque te aceito mesmo quando tropeças
nos tempos, nas figuras de retórica, nas
Promessas, na métrica torta de teus
Poemas. Eu te aceito como não aceitaste
Esta, caso seja Ela a que decantas em teus
Versos. Quem é mais Compassivo entre
Nós?!



Gostas dos Templos Budistas?!
É bom, Eu também gosto de Templos.
Gosto Deles Derrubados com gente
dentro. Mas vamos ainda falar de
Hilda. Lembra-se da Ângela Gorda,
da Patrícia Louca, das sobrinhas
cafetinadas pelas Tias e Mães
Adotivas?! Não eram Elas, como Tu,
Compassivas?! Lembra-se de quantas
foram as Sabrinas Perdidas que te
encontraram, e de tua própria Hilda,
Noivo Insensato, Inseto da Letra Mal
Vista! Porque escolhes para Ler os pouco
Lidos em Vida, enquanto a Víbora ainda Sibila
e Me Alisa?! Tu não me enganas. Eu vejo Bem
teus Olhos de Búfalo medindo a Mim como Quem
Conta Heras Podres em Imenso Latifúndio. Mas
te relembro: Aqui é o Lugar do Tombo. E não
diga que Aqui Pisas sem Aviso. Entraste com
Chave de Ouro e Duplicata (lembra-te de tua
Réplica?!), por mim gerada no Vácuo, Meu
Habitat. E sairás Arranhado. Pra mim, Nada
Mais é Necessário. Mais Nada. Eu sou o Pai



dos Ritos Sórdidos, das Danielas e Anas Claras
vendidas, também dos teus suspiros de clara
batida. Eu sou o Pai da Mentira e no entanto
Me segues até Aqui. Eu sou o Pai dos Fernandos,
dos Leandros Enterrados em Campos Santos,
Eu Sou o Pai dos Marcelos históricos, feéricos
ou abstêmios, tanto faz. Sou o Padrinho que
inspira os Insights dos Santos, dos Gênios e
dos Malditos. "Para o Vazio", é meu Salmo
Preferido. E não é o Vazio da Superação dos
Pólos, como você Quase Aprendeu com Teu
Mestre. Não! É o Vazio da Falta de Pólo, Peso
ou Contrapeso, é o Vazio sem Volta da Outra
Volta do Parafuso, o Vazio Sem Centro
Gravitacional, No Qual Tudo Cabe Dentro.



Aqui é o Lugar do Tombo, e o Tombo é o
Buraco Negro. "Para o Vazio a Vocês Todos",
Clama Você aos Insetos. Para o Vazio Você
Mesmo!, Clamo Eu, o Pai dos que Você Des
-Preza. Agora é Hora de Medir Forças!
Sinta o Peso de um Único Dedo Meu no
teu peito. Não te parecem Cem Quilos?!



O que te parece?! Ainda que possas bater
em seis de meus Sentinelas, repito ( para
que não relutes em Crer no Que te Digo ),
são Cem os Sentinelas, e suas Montarias
também oferecem Perigo. Então..., gostas
um Pouco de Mim., queres ser Meu Amigo?!



Senão por Amor, por Medo?! Por que não
Me Beija na Boca como beijou três mil e
quinhentas Putas?! Puta-Que-O-Pariu,
por que tamanho Pasmo?! Vês essas Veias
saltadas em minha Cabeça Calva?! Olhe as
Paredes do Meu Recinto. Olhe as Inscrições
nas Paredes. Há Mais do que os Rastros das
Larvas de Insetos, Meu Caro Filho. Há Mais
do Que as Pegadas Sujas, ou o Grito Empesteado
das Sagradas Putas. O Que Há é o Inverso O
Reverso das Sagradas Escrituras e Todos Os
Verbos, porque Eu Embaralho as Letras e
empenho o Fel em meio às Uvas, eu Tranço
Vulvas com Espinhos Santos, Eu Sou o Ladrão
e Corruptor das Virgens e Viúvas. E Sou Eu
Que Te Espia em teu Clamor Quando Estás
Sozinho. E no entanto achas que Eu Ofendo



o Teu Faro de Rato Cinza Escuro, que Eu
Transcendo Teus Contatos Preferidos
com o Que é Mais Sujo. No Entanto, Achas
Isso. E também No Entanto Eu Repito e
Grito o Teu Provérbio Preferido: "Olhos
Vendados São olhos Vendidos". Tu te
lembras Disso?! Você O Fez! Você O
Sabe! "Tu o Dizes", disse Cristo a quem
Lhe perguntou se de Deus era Filho! Eu
Recito a Bíblia também, de cor e salteado.



Eu Sou o Salteador. Tu o sabes também de
cor. Eu sei das Fezes e das Reses que Fugiram
do Seu Pastor. Sabes o Que Mais? Sabes O Que
Digo?! Reconheço que Aprecio o teu Ditado, Algo
que Enxergas e Resmungas Quando Meditas
Calado. Reconheço que Acho Interessante, mas
é Pouco. Enxergo em Ti, com Meu Olho de Réptil
Medonho, talvez Meio Olho Teu Aberto. Talvez
seja o Suficiente para falar de Mim, Parafrasear
Dante ou Delatar muita gente. Sujeitinho Bom e
Indecente é o Que Acho de você. Cairias em treze
segundos numa Competição Ombro a ombro, à
moda das Lutas dos Índios de que Gostas tanto.


Mas tenho algo a Te contar, Amigo: O Mundo
Não É mais Índio, e O Mundo Não É mais Sagrado.
Eis o Segredo que Contigo Compartilho com Repulsivo
Respeito. Se é que Me Entendes: Te Respeito Porque
Não Foges do Que Seja Mais Ferino. Fincas pé como
Teimoso Equino que és. Por vezes dá coices. Talvez
até Relinche durante a Noite, quando as Nuvens e os
Homens Dormem. Mas Eu Sou O Insone. Compreendes
O Sentido Fundo de Ser Como Eu Sou?! Compreendo a



Coragem de Teus Escritos, e Sei de Muitos que se Benzem,
Aflitos, Diante de Tão Bem Concatenado Grito. Eu Sou O Pai
Deles Também! Mas todos arrancam de Si O Que Têm, ou
O Que Sabem, ou O Que Ouviram Dizer, ainda que muitos
Não Gritem Alto Para Que O Som Salte O Muro. Tu és o
Ladrãozinho, o Salteador Noturno, Primo-Irmão dOs Que
Declamam Sozinhos Nos Becos Da Escuridão. No Entanto,
Sempre No Entanto, Te Respeito Até Certo Ponto, como
Respeito Aqueles que Intentam Distinguir o Mal do Bom,



Com Todos os Riscos Implicados nIsso. Consinto, ainda que
sendo Inseto aos teus Olhos semi-ímpios que recolhas do Chão
Alguns de Teus Elementos-Alma, Alguns Elementos-Foco,
Alguns Elementos-Faro, Alguns Elementos-Fôlego, Alguns
Elementos-Sílabas-de-Exaltação-aos-Elementos-Todos.



Consinto por Meu Próprio Mérito. Você é homem Precavido
e Esperto. Olhos Vendados São Olhos Vendidos. É Fato. E
Tua Sorte É Ter Meio Olho Aberto. Se é Assim, Consinto que
recolhas do Chão esses Elementos, e depois te Enxoto como
Burro, como um Cão Semi-Iníquo Pintalgado de Branco, como
um Dálmata Que Salta a Esmo Enquanto o Mundo Se Consome
e Arde Desde Aqui Debaixo. Se és Mau Pela Metade, Não Te
Retenho, mas te Enxoto como um Feixe de Feno ao Vento, e
Te Cubro com Cem Mil Olhos Meus e de Meus Sentinelas Te
Vigiando O Tempo Todo. E Te Libero como Meio-Cão inofensivo



aos Meus Cem Mil Olhos, porque teu Meio-Olho não tem na ponta
uma Mão Que me Aponte e Revele o Meu Refúgio. Aqui É O Lugar
do Tombo, e eu te Enxoto por causa de Teu Meio-Olho, É O Que Te
Salva, e Pronuncio Teu Nome Na Minha Orla de Silêncio e Fome. E
Eu Sei das Maldições a Maior: "Que a Minha Orla Paire Sobre Tua
Própria Auto-Observação e Nunca Chores". Eu Te Pronuncio em
Minha Orla, ainda que Sejas, Tu, Difuso, Semi-Observável, Semi
-Dizível e Isso é o Máximo que Me Consinto Bem-Dizê-Lo ou
Elogiá-Lo. E Isso, não fosse eu teu Pai Postiço, ou teu Tio, Quase
Me Assombra, Não Fosse Eu a Sombra das Sombras, da Penumbra
ao Breu.



Mas como aceitas o Meu Peso e Registras em Tintas,
ora verdes ora cinzas, as Coisas que Te Digo,
Agora Segue Teu Rumo ao Infinito em Linha
Quase-Reta, Até Onde Tua Voz Chega.
Pra Mim Já Chega.




Já Basta Tê-lo Arranhado em Tuas Costas e em Tua Testa.
Ainda que Não Tenha Conseguido Te Imprimir Minha
Marca.
Esta".











Marcelo Novaes



Maleita!

Aproveita essa maleita,
essa febre suspeita esse
tremor que te assalta na
hora ingrata e libera tudo
que a língua, agora, não
mais trava.


Aproveita e vomita muito
muito, que a doença reaviva
a vida, põe pra fora todo o
desgosto o gosto amargo
que te assola e desfigura
o rosto, deixa esvair o
veneno que te infesta
o corpo, lança tudo
pra fora no esgoto,
deixa a febre que
te faz tremer te
realinhar os
ossos,


e pensa em cada coisa
imprópria que não quer
mais fazer, naqueles
escritores intoleráveis,
que nunca mais irás
ler, pensa nos maus
poetas, nos péssimos,


pensa naquelas pessoas
de quem não queres ver
nem a cara,


pensa em todas elas e
vomita o quanto possas,


pensa no segredo que não
se guarda de um amigo:
chama-o e revela-o.


Pensa na Toca da
Liberdade,
que era o porão onde
escrevia Érico Veríssimo.


Pensa no que te apazigua
o medo e agasalha Isso
bem Dentro, por entre
-dentes, por entre os
dedos, na hora em que
te treme o queixo e te
batem os
dentes.


Traz tua cabeça para
as coisas mais claras
e próximas,
e descobre como são
as mais
densas,


deixa as outras se
dispersarem,


vomita mais como vomitam
os índios Kamayurás nas ocas,
num cantinho, quando se
preparam para
guerrear:


primeiro limpam o corpo,
primeiro vomitam,
não comem doces
nem salgados,


limitam o seu
espaço, não se
dispersam.


Visitam a
Solidão.


Aproveita, então, a maleita,
faça-a bem-chegada e bem
-recebida, para fazer essa
Visita e para ser Visitado.


Aproveita a febre e frágil
idade e convida pra te
atravessar a alma o corpo
a sombra, como avenidas,
aquela Ave-de-Vento bendita,
acolhe-a em suas asas de febre,


recita com voz trêmula
a Ave Maria,


redescobre a poesia nas
orações mais simples,
maternas.


Não chama a maleita
de maldita, como fazem
tantos,


aproveita o barro sujo,
aproveita a fraqueza de
pernas e
braços,
e se renda ao leito,
te entrega à doença
como a criança se
larga no
berço.


É o melhor jeito de
se afundar em si
mesmo.


Pensa que há outros
males que vêm para
pior, que há males
que te tornariam
repudiado, como
o mal-de-Lázaro,
e este não é o caso.


Aqui, é tu que repudias a ti
mesmo e vomitas em jatos.


Abençoa a malária bendita
que vai limpar teu fígado e
modificar teus modos, que
vai te afastar dos cassinos
por quinze dias, o que dará
para pagar tuas contas. Depois,
quem sabe, pare de cobiçar a
esposa do teu primo Salazar.


Olha e olhe pelas frestas das
janelas e cumprimente os vultos
que trazem rosas ou que rezam
novenas, com cores pálidas ou
vistosas, cores que só a febre
detecta flagra cores inimaginadas,
cores de ogros duendes doentes
sonâmbulos e fadas mulambas.


Cumprimenta a malária como a
uma amiga que chega de viagem
e depois te avisa, que vai te fazer
companhia por
quinze
dias.


Olhe pela fresta da janela,
não há nenhum atrativo no
som das festas nos risos nas
moças que passam tão rápido.


Olhe o mundo sem arestas, liso,
pronto pra ser embalado, quase
inteiro, no teu sono entorpecido.








Marcelo Novaes


Rastro


Você deve afastar a cama,
porque a cadela está chorando.
E ela não chora sem razão.
Seu focinho aponta bem para ali,
onde a cama se encosta sob a
janela. Afaste a cama da parede.
Deixe a cadela farejar,
procurar pelo osso, na espécie
de secreta passagem que se abre,
quando a cama se move.
Ninguém dorme,
e nada se
ouve.
Você queria se abraçar a ela,
latir,
mas tem de vê-la seguir em
frente, pela viela que não se sabe
onde vai dar.
Tua barriga está doendo, ronca,
e também dói
pensar.
Tentar ver, com luz fraca,
engatinhando atrás de quatro
patas,
é o que se pode fazer de melhor,
nesta hora. Sua tentação é
voltar, mas ela usa o faro,
não a
razão.
Por isso ela ganha de você,
no subsolo ou no
firmamento,
o lugar da cadela é mais
alto que o
seu, mesmo antes
de pegar o osso ou
alcançar o
alvo.
Tente de novo.
Entre mais uma vez.
A fresta não é tão si
-nistra.
É destra.
Então,
desta vez,
aprenda.
Viu?! É só seguir o
cão, que acaba de
mudar de
sexo.
É macho.
Há um rosto
desenhado na
parede, ao fim
e ao fundo da
fenda.
Não lata na hora errada.
Mesmo sua cadela está
calada, pois logo volta a ser
fêmea.
Ela cola o focinho no chão,
onde cai uma gota de sangue
do rosto desenhado.
É Cristo,
por entre os canos
do esgoto.
E, por trás de tudo,
há o lixo,
há o mundo.
Teu cão pára, não passa o
limite, o faro não o engana.
Tem bom gosto.
E volta a ser macho
de novo.
Vês a imagem
des
ni
ve
la
da
do teu Salvador,
como que a fremir
por entre venezianas
sujas, pois são canos
sujos e enferrujados.
Sim, Ele sempre esteve
nos vãos,
nos desvãos,
por sob os desvios,
no buraco entre a parede e o chão,
na passagem onde poucos entram,
por detrás da porta estreita,
como aquela que se achou,
de súbito,
atrás da cama.
Ele está na frente
dos canos do
esgoto, do lixo,
do que
sobrou.
Ele vence a aflição
do mundo
cão.
Ele fez ondular tua voz, como
jamais soou ou
soará.
E o cão passou a latir,
restituído à situação de macho.
Teu rosto enfim se condói,
enquanto canta a tua voz,
e o cão
gane,
definitivamente.
Infinitamente.
Nada mais natural:
Ele é o Verbo no
Infinit(iv)o Presente, e Seus olhos só
se deixam ver advinhar ver advinhar por entre o
dito. Ele perscruta vozes e latidos e sonda ronda
as paredes sem chamar atenção para Si Mesmo.
Mesmo antes do cão farejar, mesmo antes do Gênesis e de
Abraão, Ele É. Definitiva afirmação. "Passarão céus e terra,
mas minhas palavras não passarão".Ele é intransigente, dirão,
ou resoluto e ciente do seu lugar.O lugar do focinho da cadela
é o chão, e convém que seu sexo retome a primitiva condição.
Tua posição,
enfim, é de
joelhos.
A cadela lambe o
sangue.
Você aprende a
orar.





Marcelo Novaes





O Dedo em Riste de Hilda Hilst


Quisera eu, Hilda,
poder tirar a pérola do musgo
do limo do limbo onde quiseram
deixá-la.
Tua obra agora aberta descoberta
depois da morte.
Triste, frívolo,
previsível,
indigno do teu dedo em riste e da
bata e do roupão puídos de tua
velhice.
Obra menos que valorizada em
vida. Talvez a obra-prima mais
subestimada.
Até disseram que a maldição a
proscrição te fez ímpar,
te fez até maior poeta à
tua revelia,
que o desprezo te fez mais
bela, enquanto envelhecia.
E que, por ninguém te ler,
por desmerecê-la a turba
anêmica dos intelectuais e
estetas que te detestaram,
e te chamaram fraude,
cresceste mais,
arrancaste energia achaste
energia dentro de ti
para escrever sem
desistir,
e que levaste pra tumba
uma dignidade mais plena.
É o consolo que te imputam
os que te sabotaram e te con
-sideraram puta, os embotados
os preguiçosos os míopes de lupa
e sem número de notas de rodapé
que não te podiam seguir a pé
nem em tua montaria,
maior poeta que este país já viu
nascer.
Quando quis popularizar-se para
ser lida,
jogando pérolas pornográficas
eruditas
para os que nunca haviam sabido
de tuas letras,
manteve o nível, a despeito da
tentativa.
Porque Hilda não pôde fugir trair
não pode sair de si, deixando de
ser Hilda,
mesmo na tentativa de ser comida
devorada digerida destroçada e
transformada em pasto para bodes
bois vacas e cabritas, e para as massas
informes e desinformadas.
Fracassou a tentativa de ser
célebre e fracassada enquanto
artista.
Tua sede de leitor permaneceu
sede.
Tua solidão permaneceu
só.
Há um sentimento de triunfo
subjacente a tudo isso, e ele
sobrevive e permite que teus
textos sejam lidos com vinte
trinta ou cinquenta anos de
atraso.
O triunfo de ter mantido tua
escrita intacta mesmo sem ser
lida, por brio fidelidade e
extremo senso de medida,
e absoluta auto-consciência
de teu nível.
Ave, Hilda, ave ávida trans
-figurada pelo olhar medíocre
em cadela mal-parida,
vira-lata,
acompanhada por seus cães
pernetas, cegos, desdentados,
em sua chácara um tanto afas
-tada dos grandes centros, a
cento e cinquenta quilômetros
de Campinas.
Ave, Hilda,
e que os cegos venham,
agora,
lamber tuas
feridas.












Marcelo Novaes




Olhos como música





Tentei me lembrar de todas
as músicas
que parecessem um choro
puro.
E não seriam as de Lupicínio
Rodrigues...
Talvez as de
Cartola se aproximassem
mais...
Mas, enfim, eram tuas
as melodias que eu
procurava.
Olhos como
música.
Olhos como águas
fundas.
Eu não conseguiria eu
não consigo chorar como
você,
tão pura e simplesmente
assim,
sem um grão de
esperneio,
sem um matiz de
censura nos olhos
castanhos.
Eu não consigo conceber
em mim
um rio de lamentações tão
límpido,
sem fel nas margens,
sem erva amarga
de nenhuma espécie
a nublar a
lágrima.
Eu não consigo imaginar
música tão funda e
infinda,
olhos como
música
tão simplesmente
melancólica e
plácida.
Por estes olhos castanhos
é que eu soube como choram
os salgueiros, os chorões, os
álamos,
foi por eles que eu comecei a saber
da cor de cada flor de laranjeira,
que eu soube dos caprichos do
orvalho nas uvas e nas
figueiras,
que eu entendi como chora
vegetalmente
e mais-que-humanamente
a natureza.
Foi por estes olhos castanhos,
com os quais me acostumei,
não sem algum espanto,
que eu captei um
algo da verdade,
que eu entendi a
dança das flâmulas acariciadas
pelos ventos da
tarde,
foi que eu pude saber das
claridades nos vãos
de tudo o que é
triste.











Marcelo Novaes


À Imagem e Semelhança ( para HF)





Do mar eu sabia o
sal.
Do mar eu sabia a
bruma,não sabia a
lama.
Eu não conhecia o
pântano dentro do
mar.
Do mar eu conhecia
escamas, não a
ganga.



Desde que meu filho
pequeno aprendeu a falar,
eu lhe ensinei a responder
à pergunta: "Você me ama, ou
me tolera?!"Ele dizia que me to
-lerava, e sempre rimos disso. Até
que eu passei a não tolerar mais o
meu marido. E meu filho preferiu fi
-car com ele. Respeitei, sem rir, mas
ele ria em me ver de quinze em quinze
dias. E repetia, sem os erros de pronúncia:
"Mamãe, eu ainda te tolero demais. Muito."



Estava aborrecida. Resolvi tirar uma folga
de cinco dias, eu e mais duas amigas bem
casadas, com maridos liberais que não se
importavam que elas se divertissem sem
-pre.Fomos acampar na praia sozinhas as
três,fora de temporada. Choveu. Trovejou.
Relampeou. Saímos da barraca. Praia sem
mais ninguém. Um raio a cada dez segundos.



- Botijão de gás atrai raio!
-Estrutura metálica atrai raio!
-Água do mar atrai raio!
-Árvores também atraem!





Rezamos, as três, torrencialmente, como três
crentes que nunca fôramos, sob a tempestade.
E éramos três orando em línguas que não co
-nhecíamos, recitando mantras em sânscrito,
e eu sofria por antecipação a antevista advinhada
perda do meu filho, sofria meu filho perder de vista
a mãe, sofria vê-lo ter de se afastar do abrigo que
era eu mesma, sofria por imaginá-lo me vendo me
afastar por não mais amar meu marido, e meu choro era
de água salgada, era um choro ressentido, mas um choro
austero, no entanto, pra dentro, de quem esconde estar
morrendo de medo. Aquilo era a celebração de águas
antigas. Ninguém diria o que se passava para além
dos raios e da água que caíam.Era só isso. Mais nada.



Algo pairou sobre as águas.
E um halo de calor nos
protegeu. Algo pairou.
Fez um vôo, mas não
como um pássaro,
como um lenço
ondulando,
como um lenço
num vôo ondulado,
vai-e-volta, vai-e
-volta, como a prece
do mar orando em nós
uma oração salgada.



Algo pairou sobre as nossas cabeças.
O corpo daquilo era de água, recoberto
por partículas de sal luminoso sal luminoso
sal e por gotas de água e sal a refletir o brilho
de nossa oração. E era de água e sal aquilo que
voava.Passou-nos o frio, enquanto víamos o
vôo daquele ser duzentos metros à frente de
nós, as três, inequivocamente, não era mira
-gem. Era, sim, feito à imagem da água do
mar.Feito à imagem do mar mais amplo, sem
sexo e com ambos os sexos, multiforme, pois
se o mar é água é também oceano.Pensei-o
masculino nem sei porque. Minhas amigas
se calaram. A tempestade se foi, e eu nem
dormi.A tempestade se foi e eu nem dormi.



No principiar da tarde,
enquanto as duas faziam o
almoço,
cismei de mergulhar no mar
meu sono e meu cansaço.
Olhei bem, e atrás da oitava
onda havia um moço. De quem
seria a imagem, feita de água e
de céu?! Não haveria de ser
Narciso em mar
salgado.
E de dividir beleza, Narciso
era mais avaro que Apolo, e
este me chamava! Este me
queria!Por certo Narciso não
seria, nem o macho de sereia,
nem miragem mal assimilada.
Nem deus de areia e água e céu.
Por certo não era Narciso nem
Apolo. Por certo não haveria de
ser imagem de incesto, ou falta
de sono.



Como apalpar os músculos de
um corpo líquido? Como copular
com um molusco?! Não importava.
Com ânimo de peixe e olhos
hesitantes, eu fui até ele que,
resplandecente,
se mostrava.
Luz fulgurante,
aura alaranjada,
transparente, voz como muitas
águas,
bracelete verde claro e
tridente.



Nadei melhor do que
jamais
nadara.
Nada fora tão claro em
minha natureza quanto
amar o mar agora...
Muito perto eu cheguei,
e já estava tão quente...
As amigas por mim já
esperavam.
Eu via a franja de areia
distante.
E nada mais me era mais
importante que o mar
exposto em rosto e
corpo fascinantes.



E eu quis tocar.



Cheguei, e o que
eu quis saber se
fez repugnante.
Desfez-se a tez
de um jovem, e
a força e o brilho
aparentes.
Senti seu toque mole
e pegajoso,
semelhante ao das ventosas
e tentáculos de um polvo,
e não quis seu beijo escurecido,
senti nojo.
A carne-de-água mole e inumana,
como o encostar incômodo da água
-viva que queima e traz náusea,
dois olhos dependurados em seis
pálpebras,
corpo macilento, emaciado, cheiro
de bacalhau, cheiro de velho sal
-picado com polvilho antisséptico
granado,
nas frieras, nas axilas, no meio das
nádegas,
feridas, fístulas e pústulas na
virilha,
pênis e esperma desfeito em
espuma e
alga,
e em mim toda a aflição e meu
asco,
meu sonho refeito em
pesadelo.



Que o mar leve meu
vômito até a
areia,
porque nem sei mais
se sei nadar de
volta.



Do mar eu sabia o
sal.
Do mar eu sabia a
bruma, não sabia a
lama.
Eu não conhecia o
pântano dentro do
mar.
Do mar eu conhecia
escamas, não a
ganga.

Marcelo Novaes

10 Comentários:

  • Obrigado, Marta, pela publicação.

    A todos os interessados em visitar meu blog, aqui está o link:

    http://olugarqueimporta.blogspot.com/


    Um abraço a todos,


    Marcelo Novaes

    Por Blogger Marcelo Novaes, às 19 de agosto de 2008 às 11:08  

  • Marcelo Novaes, é o nome que mais respeito, e aponto como um escritor de grande porte. Nos seus versos e textos, encontramos da mitologia à religiosidade. Profundo conhecedor de literatura e excelente escritor.Em seu livro Cidade de Atys, enxerga-se bem sua alma . A cada capítulo, abre-se um novo livro. Admiro e respeito sua criatividade, que versa sobre o "Nada" e sobre o "Tudo" de forma engenhosa, única, sem falr dos seus bem humorados textos não expostos aqui.

    à você, Marcelo Novaes, meu aplauso.

    Com carinho

    Mirze

    Por Blogger Unknown, às 19 de agosto de 2008 às 11:47  

  • Marcelo,
    um prazer conhecer um pouco de teu trabalho, faço questão de voltar e ler um por um com mais tranquilidade.
    Parabéns!
    abraços!

    Por Blogger Sirlei Passolongo, às 19 de agosto de 2008 às 13:28  

  • Mereceida valorização, pois eu tenho o que leio do Marcelo, fonte de muita sabedoria, criatividade, inteligência. Sempre exemplar, sempre divino, eu sou incondicuionalmente admiradora.

    Pois ele sem dúvidas, merece total admiração.

    Por Blogger Dyane Priscila, às 19 de agosto de 2008 às 19:29  

  • Querido Marcelo, muito merecida essa homenagem da Marta, nesse importante jornal!!!!
    Você é uma das pessoas mais talentosas que conheço, parabéns, amigo querido, que esse seja apenas o iníco de seu grande e mercedi sucesso!!!
    Parabéns Marta!!!Adorei a matéria, e os poemas postados!!!
    Com carinho

    Por Anonymous Anônimo, às 20 de agosto de 2008 às 08:53  

  • Marcelo,parabéns pelos belíssimos poemas!Prazer imenso te ler.
    Beijo poesia*

    Por Blogger Sandra Almeida, às 20 de agosto de 2008 às 09:33  

  • Olá Marcelo, adorei conhecer seu trabalho...seus poemas são encantadores, bjus Simone.

    Por Blogger Unknown, às 20 de agosto de 2008 às 16:13  

  • Marcelo Novaes, um novo poeta para uma nova geração que acalenta todas as gerações!
    Consegue realizar a junção do velho e do novo,da sensibilidade com a crítica,da fragilidade com a com coragem com a exímia perfeição de alguém que tem o talento vertendo em seu SER...
    É autêntico, objetivo, realista, didático mas acima de todas essas qualidades é um poeta que sabe ser doce sem ser "perfomático" e a característica mais marcante de seus poemas/prosas/poesias é justamente não saber o que vem depois pois é de uma originalidade imensurável...
    Não se pode dizer que Marcelo Novaes tem esse ou aquele estilo, não se pode comparar Marcelo Novaes dizendo "isso do Novaes me lembra tal poeta renomado" pois ele é simplesmente ímpar em tudo o que produz!
    E sua qualidade poética o coloca entre os dez melhores poetas do país no meu conceito de apreciadora de poesias/prosas/poemas!

    Por Blogger Elaine Siderlí, às 20 de agosto de 2008 às 17:49  

  • Meu grande amigo,
    Não sei se tenho alcance literário, ou poético, para participar deste diálogo tão enriquecedor. Darei no entanto uma opinião que evidentemente pode ser descartada, omitida e incinerada.

    Concordo com algumas coisas de André, e outros, concordo muito mais na sua retórica.
    Realmente, e isto discuto sempre. Há um endeusamento pelos antigos e grandes poetas, e este tornar-se um Deus poético, melhor dizendo, comparar alguém que viveu em outra "era", com um poeta atual, é negar a própria existencia poética. Sempre questionoo o porque de não se ler tudo, mesmo que não agrade. Preciso analisar, mas principalmente compreender no tempo, as modificações sofridas, no sentido de sofridas=somatório de leituras de poetas antigos + atualizar-se usando seu EU POÉTICO.

    Fiz uma enquete há alguns anos, quando uma editora se recusou a publicar um livro de poesias, com pessoas de várias classes sociais e em vários estados do Brasil. A maioria não lê poesias, opina como se a poesia, fosse uma expressão de vaidade do autor, que como fala, o poeta, em linguagem metafórica e/ou figurada, a pessoa comum, prefere não se envolver para não se dar ao trabalho de compreender. Peça a um músico de renome, para colocar em partituras e musicalise um poema, acontecerá o mesmo. O músico há de ter pistolões etc...

    Contradigo a isso tudo, continuando a escrever poesias, e olhe que escrevo por instinto, não com a sua arte. Deixar para a posteridade como Van Gogh, é risco a ser visto com bons olhos. Muitos escritores são reconhecidos, ao mesmo tempo que tira a esperança, o "hope so" do poeta. Sempre me questiono incluindo o Paulo Coelho, porque ele é famoso no mundo inteiro. Ovacionado na França e em toda Europa. Porque? Porque deu o pulo do gato. Viu que o zen- humanismo estava em pique, e entro com "O MAGO", seguido de outros, sempre do mesmo gênero. Mas ele não queria expor sua literatura. Sei, porque o conheci sem fama. Ele queria unica e exclusivamente ganhar dinheiro. É o lixo do luxo.

    Entre as inúmeras pessoas que peço para visitar seu blog, ou o meu e de tantos outros, mas principalmente o seu, que é a poesia atual, contemporânea e inédita, ouço como resposta: "Olha fui lá, mas só tem poesias e textos que não compreendo". Absurdo? Não. é a realidade.

    Vou fazer uma coisa que me veio ontem a mente, como um LAMPEJO. Vou postar uma poesia de Shakespeare, seguida de Fernando Pessoa, depois Manoel de Barros, e Jão Cabral de Melo Netto.
    Intercalarei cada uma delas com textos de Paulo Coelho. Veremos quais serão mais lids. Depois disso coloco as suas intercaladas com os escritores que você julgar muito bons, mas contemporâneos e desconhecidos.

    Aguarde os resultados. É um jogo. Cartas na mesa.

    Sei que não fui muito coerente à sua indagação, mas é hábito responder com outra indagação, até chegar a um denominador comum. Por isso me indigno com sua perspectiva de parar nas mil postagens. Pegue seus poemas, peça para escreverem em papiros, e emoldure-os, depois exponha=os. Não serão vistos como poemas, mas como obra de arte.

    É isso.

    Beijos, meu amigo querido.

    Mirze

    Por Blogger Unknown, às 24 de agosto de 2008 às 01:20  

  • Amigos leitores,



    Tive a minha estréia (hoje ) como um dos colaboradores do Portal Cronópios. Estou na home do Portal. Confiram meu trabalho por lá, e postem comentários. Se quiserem. O mecanismo de postagem é esse: no alto da minha página, à esquerda, clica-se em "blog do texto". E posta-se um comentário. Ajudam, dessa maneira, a me firmar naquele espaço que tem 60000 usuários cadastrados. http://www.cronopios.com.br/site/default.asp



    Um abraço e muito obrigado a todos!



    Marcelo.

    Por Blogger Marcelo Novaes, às 7 de setembro de 2008 às 18:51  

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