O escritor que sabia remendar sapato...
O escritor que sabia remendar sapato...
Um bailarino nascido no Brasil está nas redes sociais porque acham que ele manteve o gingado nato ao seu país, mesmo tendo sido adotado ainda bebê na Rússia. Conheci em São Paulo um jornalista gaúcho que ama a Rússia, lá esteve e para lá quer voltar sempre porque considera o povo um tanto quanto antiquado, porém solidário.
Eu abraço os nevoeiros e nunca estive em Moscou ou Leningrado. Não na situação que exige desembarque, passaporte, táxi para o hotel, estranhamento e esforço para sobreviver longe da língua-mãe. Mas a mente passeou muito por aqueles bosques e ruas, os campos e mosteiros, o ambiente duro e paradoxalmente dócil do país da cidade de Tula, em cuja província Iásnaia aPoliana nasceu Liev Nikoláievitch Tolstói, em 1828. Eis o escritor.
Agora, como na verdade sempre foi, estamos todos clamando por educação, o precioso bem que esclareceria os black blocs do real sentido da manifestação por um mundo melhor, mostraria a todos que os Tingas estão dentro de nós, dividindo o mesmo sistema coronariano e a lógica das temperaturas corpóreas, e que enquanto não vencermos a morte que reside em nossos preconceitos, não seremos limpos o bastante. Ele, o escritor, abriu uma escola para os filhos dos camponeses em 1859 na sua cidade natal, consciente de que a instrução os tornaria maiores e mais felizes. Só em 1863 começaria a escrever “Guerra e Paz”, sua obra-prima.
Talvez a espiritualidade desse escritor russo tenha sido o fator primordial para que ele esteja na cabeceira da minha vida. Talvez eu goste muito de viajar e por Tolstói estar onde a neve tem a mesma dimensão que aqui tem o sol, eu o tenha escolhido.
Às vezes desejamos o vinho mais caro da adega, o pássaro mais distante da paisagem por achar que, esticando bem os braços, acabaremos mais compridos. Seus contos são belos, alguns talvez sejam considerados simplórios, talvez cheguem a ser piegas para muitos leitores. Não há complexidade aparente em Tolstói como há em Dostoievski, preferido dos filósofos e psicanalistas.
Escreveu “O Reino de Deus Está em Nós”.
Ao final da vida, renunciou a seus direitos autorais e transferiu as propriedades para a esposa e os filhos. Abandonou álcool e fumo, tornando-se vegetariano e ciclista.
A biografia do escritor russo tem 639 páginas e a capa em preto e branco com o nome Tolstói em vermelho exibe um rosto intrigante. Ele parece querer dizer mais do que nos deixou nos escritos. Cabelos, bigode, barbas, sobrancelhas, todos brancos, revelam uma velhice que não se aceita. Porque ele está onde esteve.
Estará ainda, embora arrependido do suicídio de Anna Karenina. Hoje ele sabe que vale a pena viver e que o escritor tem imensa responsabilidade sobre os exemplos que deixa nos livros. Possivelmente, estaria satisfeito com o papa Francisco e experimentaria escrever no computador. Afinal, leu Confúcio e Lao-Tsé e sabia remendar sapatos.
Leida Reis
Leida Reis é patrocinense, editora-executiva do Hoje em Dia, onde também escreve uma crônica semanal (às segundas-feiras), no Caderno de Cultura. É autora dos romances policiais 'A invenção do crime' e 'Quando os bandidos ouvem Villa-Lobos'.
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