O outro lado
Rodrigo Novaes de Almeida - Escritor e jornalista (Rio de Janeiro-1976), publicou, pela Multifoco Editora, o livro de contos “Rapsódias – Primeiras Histórias Breves” (2009), pela Mojo Books, a ficção “A saga de Lucifere”, e participou das antologias “Portal Stalker”, “Portal Fundação” e “Portal 2001” (org. Nelson de Oliveira).
O outro lado
Rodrigo Novaes de Almeida.
“O irreal só não superaria a realidade porque experimentamos verdadeiramente, como observadores, o que nos foi dado experimentar – o que seria, para muitos, sonho, para nós será apenas o outro lado, um outro lado.” (Josué Francisco Fernandes)
Era a fronteira entre dois países beligerantes. Uma rua de terra batida. De um lado, soldados maltrapilhos se enlameavam dentro de trincheiras rasas que mal escondiam suas cabeças. Preparavam suas armas para a batalha. Atrás deles, edifícios baixos semidestruídos. Do outro lado, uma cerca de arame e, adiante, o início de uma floresta. No final da rua, uma trapizonga tecnológica destoava daquela paisagem desolada. Que tipo de arma seria aquela? Não descobriríamos. Fora montada no meio de uma praça, ou, pelo menos, do que fora um dia uma praça. Um cruzamento que determinava o final da rua, direção leste-oeste. Para o norte, o desconhecido país lar daqueles soldados maltrapilhos; para o sul, a floresta. E nesta direção, uns duzentos metros adiante, um posto alfandegário abandonado. Atravessamos para o outro país. Nele, ao contrário do contingente militar, encontramos meia dúzia de homens (entre eles havia uma mulher). Usavam roupas camufladas para a selva e estavam se mijando de medo. Não sabiam o que fazer diante da ameaça do outro lado. E se fossem atacados? E se isso acontecesse hoje? O que deveriam fazer? Meia dúzia de combatentes contra um exército inteiro e uma arma misteriosa. Que tipo de líderes de um país manda para a guerra apenas meia dúzia de homens (com uma mulher)? De repente, um estrondo. Era o ataque. Confusão danada. Puta que pariu. Vamos todos morrer, os seis! Cagaço geral, começara a guerra. E ela chegou sem contagem regressiva e música de abertura. Nenhum prólogo. Estávamos irremediavelmente fodidos. Seis mijões em roupas camufladas. Foi então que, diante do terror imediato, tivemos uma resposta contrária a todo e qualquer bom senso: da testa de um dos soldados começou a sair rajadas de energia mortal. Dezenas de inimigos tombaram. Raios de aniquilação. Outro soldado, escondido agachado entre a vegetação chamando pela mamãe dele, desapareceu e ressurgiu além das linhas invasoras em marcha, para, no susto, mandar outras dezenas deles para o inferno com o fogo de balas de sua metralhadora. Bundas inimigas chamuscavam. A única mulher do grupo estava numa enrascada tal, que sua reviravolta merece certa áurea de delicadeza, e pedimos licença para dizer propícia ao gênero. Fugia ela de um pelotão de tarados. Se fosse pega, deus (à escolha) teria que fechar os olhos. Era coisa para o diabo (este só tem um mesmo) lamber os beiços. A guerra propriamente deve ser sempre assim, (um lugar-comum) com deus fechando os olhos e o diabo lambendo os beiços. Seria estupro ininterrupto para os sete dias. Coisa feia mesmo. Desesperada, ela subiu numa árvore antes que fosse alcançada. A árvore tinha uns frutos enormes multicoloridos (azul, laranja e marrom predominavam), e de sua haste decaíam flores ultrafinas e roxas. Quando o pelotão chegou, ela era um desses frutos-flores exóticos. Sua roupa camuflada estava presa aos galhos. As botas eram vistas no chão. Um dos soldados coçou o queixo. E, abobalhados, foram todos embora. Depois de um tempo ela voltou à forma original, e agora pudemos vê-la nua, era formosa. Algumas horas mais tarde, tantas foram as baixas que o exército invasor recuou – a floresta parecia amaldiçoada. Não chegaram a usar sua misteriosa arma, a trapizonga tecnológica que ocupava toda a velha praça (e por isso não descobrimos seus desígnios). Perdemos também o rastro dos estranhos soldados da selva. Não conversamos com ninguém de nenhum dos lados. Não sabemos quem são. Não temos conhecimento de nada além desses confusos fatos. Nem vimos tudo. Não fomos oniscientes. Deixamos aquela estância com mais perguntas do que admitiremos nas próximas vezes que contarmos essa história.
Rodrigo Novaes de Almeida
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